O Fórum de Governadores e demais representantes dos governos estaduais em audiência pública em Brasília realizada no dia 05 p.p. reivindicaram o direito às compensações pela União de bilionárias perdas de arrecadação do ICMS decorrentes da aplicação da chamada Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/1996), vigente no país desde novembro de 1996. O inciso II do artigo 3º da referida lei colocou no campo da não-incidência do ICMS as operações de exportação de produtos primários e de produtos industrializados semielaborados.
Este ato veio como uma bomba para a arrecadação dos estados que têm em sua economia forte presença das exportações destes produtos a exemplo de Minas Gerais e Pará, grandes exportadores de minérios. A própria Lei Complementar e a Constituição Federal haviam previsto a compensação das perdas de arrecadação pela União aos estados e municípios. Ao longo destes 23 anos de vigência da Lei Kandir, os estados perdedores sempre alegaram a insuficiência dos recursos compensados pela União. Chegaram a levar a contenda ao Supremo Tribunal Federal em 2018, que decidiu a favor dos estados, mas, a partir de então, nada foi operacionalizado.
Recentemente, depois de décadas de enfrentamento e aprofundamento da crise fiscal dos estados, várias das atuais administrações estaduais vêm tomando diversas iniciativas para reequilibrar as suas finanças. Neste contexto, a validade dos dispositivos da Lei Kandir que versam sobre a não tributação das exportações entraram na mira dos estados que passaram a reivindicar da União o justo ressarcimento das perdas de receitas de ICMS.
A situação chegou ao ponto crítico do governador de Santa Catarina classificá-la como “o maior calote que o governo federal deu nos estados” ([1]). Segundo levantamento apresentado pela Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais ([2]) as perdas líquidas de receitas de ICMS dos estados para o período de 1998 a 2018 (valores corrigidos pelo IGP-DI) chegaram ao total de R$ 647,0 bilhões, sendo R$ 117,3 bilhões para São Paulo, R$ 102,3 bilhões para Minas Gerais, R$ 64,4 bilhões para o Mato Grosso, R$ 59,7 bilhões para o Rio Grande do Sul, R$ 54,8 bilhões para o Paraná, R$ 39,2 para o Pará, etc ([3]). Cálculos mais atualizados para Minas Gerais apontam um montante de R$ 135 bilhões.
Apesar do protesto dos governadores no último dia 05 de agosto em Brasília e da relevância dos recursos envolvidos, nada ficou decidido.
Este é mais um grave capítulo do descalabro a que chegou o “sistema” do ICMS no Brasil. Por melhores que foram as intenções da Lei Kandir em desonerar todo o universo das exportações brasileiras a fim de promovê-las e atender à política cambial da época de manter o Real valorizado – além de aproximar o ICMS às melhores práticas tributárias de um autêntico Imposto sobre o Valor Agregado, o IVA – o tiro parece ter saído pela culatra.
Ao longo de todo o período de vigência da Lei Kandir, os estados ainda se jogaram em uma fraticida guerra fiscal que no médio/longo prazos trouxe mais malefícios pela corrosão de receitas do que ganhos de desenvolvimento regional, além de enorme insegurança jurídica para os empreendimentos beneficiados. No entanto, desde meados dos anos 1990 até pelo menos 2014, as perdas de receitas decorrentes da Lei Kandir e da guerra fiscal ficaram mitigadas por principalmente três ocorrências de grande impacto positivo nas receitas estaduais do ICMS:
sobre-exploração das bases tributárias conhecidas com as blue chips do ICMS: energia elétrica, combustíveis e telecomunicações, bases gigantescas de longo alcance territorial e presentes em todas as cadeias produtivas do país. Em muitos casos com alíquotas avantajadas, essas bases chegaram a compor um terço das receitas do imposto (em alguns estados menos industrializados, chegaram a 45% da receita);
crescimento econômico do período de 2003 a 2014 que possibilitou ganhos excepcionais de receita e sobrevida financeira aos estados, mesmo com o crescimento das despesas e,
espraiamento dos regimes de substituição tributária para a quase totalidade das mercadorias a partir de 2008, principalmente nos estados mais industrializados do Centro-Sul do país, o que, nos primeiros anos de vigência para as novas mercadorias, antecipou arrecadação provocando uma excepcional bolha de receitas.
Na virada do ciclo após 2014, recessão e baixo crescimento econômico, além de derrubar as receitas correntes do ICMS, vieram acompanhados de outros revezes. As tradicionais blue chips revelaram-se cada vez mais insuficientes para suprir buracos de receitas de outros setores. Além de terem sido objeto de controle de preços e tarifas para situá-los abaixo da inflação (combustíveis e energia), o desenvolvimento de novas tecnologias de telecomunicações fora do alcance da base de incidência do ICMS, ambos fenômenos minaram uma das mais importantes fontes de receitas estaduais.
Por outro lado, os atraentes e aparentemente robustos regimes de substituição tributária produziram inesperados efeitos negativos de segunda e terceira ordens a partir da virada do ciclo (2014). Jogaram o “sistema” do ICMS em um cipoal de complexidades de altíssimo custo de conformidade e de capital de giro (efeito de segunda ordem), instigando as grandes empresas substitutas em parcerias com as substituídas a sofisticados planejamentos tributários de grande elisão e sonegação fiscais (efeito de terceira ordem). Se antes pequenas empresas, normalmente na ponta varejista, sonegavam o imposto das suas próprias operações, depois, sob o signo da substituição tributária universalizada, as empresas passaram a elidir e a sonegar porções cada vez maiores do imposto da cadeia inteira. Neste ínterim, apareceram ainda diversos outros esquemas de sonegação conjugados à guerra fiscal trazendo significativo derretimento das receitas estaduais ([4]).
Importante destacar que a arquitetura do ICMS pelo princípio misto de origem-destino nas operações interestaduais e destino puro nas exportações é uma combinação perversa que induz a um desequilíbrio federativo de grande proporção. Os estados que têm boa parte da sua base produtiva direcionada para a exportação, como Mato Grosso e Pará, por exemplo, também têm estruturas produtivas que dependem de aquisições de produtos industrializados dos estados do Sudeste e Sul. Os primeiros se veem na obrigação de ressarcir créditos acumulados para as empresas exportadoras instaladas em seus estados. Porém, os recursos destes ressarcimentos saem do seu próprio orçamento para ressarcir créditos de ICMS que foram entesourados pelos estados mais ricos do Centro-Sul, os fornecedores dos bens industrializados. Assim, os estados exportadores que não têm base industrial mais diversificada tendem a reter recursos que em um sistema de um IVA clássico seriam direito puro e certo do contribuinte.
Tudo isto aliado ao crescimento das despesas públicas que ocorreram no período do boom econômico, jogou diversos estados em um dos piores caos fiscais da história recente do país.
Possíveis soluções no âmbito das compensações da Lei Kandir como um dos vetores de saída da grave crise fiscal dos estados não podem ser descartadas na atual conjuntura. Além do ressarcimento com recursos orçamentários por parte do Governo Federal, abatimentos sobre as dívidas estaduais poderiam ser uma das soluções, mesmo que escalonados. No entanto, entendemos serem estes expedientes de fôlego curto pois os elementos estruturais que compõem a (des)configuração de todo o sistema do ICMS continuariam presentes. Somente uma reforma tributária nos moldes da Proposta da Emenda Constitucional 45/2019 aliado a um novo Pacto Federativo acreditamos constituírem-se solução mais duradoura e apta a enfrentar os desafios da economia contemporânea. Assunto para um próximo artigo.
Artigo por Ângelo de Angelis – Economista e Agente Fiscal de Rendas da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, representante da Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo junto ao Centro de Cidadania Fiscal – CCiF.
Fonte: JOTA