A Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) suspendeu por 90 dias a possibilidade de cortes no fornecimento de energia elétrica em caso de inadimplência do consumidor por conta da pandemia do novo coronavírus. A medida vale para distribuidoras de eletricidade de todo o país.
A decisão foi tomada depois que alguns estados começaram a levantar a possibilidade de adotar a medida de forma unilateral. Segundo a Aneel, a resolução aprovada na reunião desta terça (24) uniformiza o entendimento sobre o assunto e poderá ser estendida após o fim do prazo inicial.
"Essa decisão visa assegurar a preservação do fornecimento aos consumidores mais vulneráveis e dar uniformidade ao tratamento aplicado pelas empresas de energia elétrica, uma vez que governos estaduais e municipais têm emitido decretos nesse sentido", afirmou o relator da proposta, diretor Sandoval Feitosa.
A suspensão vale para unidades residenciais urbanas e rurais, incluindo baixa renda, além de serviços e atividades consideradas essenciais, como unidades de saúde, segurança pública, instalações de telecomunicações, e produção de centro de produção de vacinas, soros e combustíveis, entre outras.
A agência pediu, porém, que os consumidores que têm condições mantenham os pagamentos, para ajudar a manter o funcionamento de toda a cadeia do setor elétrico e o pagamento do salário dos funcionários das empresas.
"Além de ser uma medida de cidadania, ela [a manutenção do pagamento por aqueles que podem pagar] permitirá que possamos abraçar aquelas pessoas que eventualmente não possam fazer o pagamento", disse Feitosa.
"Aqueles que têm condições de pagar a conta de luz é importante que assim o façam para que a gente consiga atravessar esse período de calamidade com o equilíbrio desejado", reforçou o diretor-geral da Aneel, André Pepitone.
O consumo residencial responde por 47% do faturamento das distribuidoras. A suspensão do corte no fornecimento não impede que a distribuidora tome outras medidas para cobrar as contas em atraso, como a negativação de inadimplentes em cadastros de crédito.
Na reunião, a agência também suspendeu medições presenciais de consumo e entregas da fatura impressa. No primeiro caso, as distribuidoras poderão calcular o valor da conta com base em média de consumo. As contas de luz deverão ser digitais.
A Aneel permitiu ainda que as distribuidoras suspendam o atendimento presencial ao público para evitar riscos de contágio. As empresas estão sendo orientadas a intensificar o uso de canais eletrônicos. A suspensão deverá ser amplamente divulgada à população.
Durante o período de calamidade, as distribuidoras terão ainda que priorizar o atendimento a serviços e atividades essenciais e elaborar planos de contingência para atender hospitais e unidades de saúde em caso de problemas no abastecimento.
Os desligamentos programados no fornecimento para manutenção terão que ser limitados àqueles considerados "estritamente necessários". O prazo para pedidos de ressarcimento por danos em equipamentos provocados por oscilações no fornecimento também foi suspenso.
A decisão alivia a pressão de autoridades sobre o setor. Na semana passada, o governador do Rio Wilson Witzel (PSC) chegou a propor em entrevista a suspensão dos pagamentos da conta de luz durante a crise, proposta criticada pelas distribuidoras pelo risco de gerar inadimplência generalizada na cadeia de suprimento.
Queda no consumo gera novo desafio ao setor elétrico
A queda no consumo de energia após as medidas de isolamento social pode levar o setor a ter que lidar novamente com o problema de excedentes contratuais das distribuidoras, situação semelhante à que culminou com empréstimo bilionário cobrado na conta de luz entre 2014 e 2019.
De acordo com a CCEE (Câmara Comercializadora de Energia Elétrica) o consumo de eletricidade já mostra fortes reflexos do isolamento social. Na segunda (23), caiu 18% tanto às 9h, quando geralmente cresce o consumo de energia, quanto às 14h, quando ocorrem os picos de demanda.
"O aumento do consumo residencial [com o isolamento] não vai compensar a queda da demanda da indústria e do comércio", diz Lavínia Hollanda, sócia da consultoria Escopo Energia.
Os primeiros efeitos já começam a ser sentidos no mercado livre de energia, ambiente onde distribuidores e geradores fecham contratos bilaterais de suprimento e que representa cerca de 30% do consumo de energia no país.
Segundo a agência Reuters, a distribuidora Cemig a e comercializadora Voltener, da Votorantim, anunciaram que podem declarar força maior em contratos. Essa cláusula permite que as empresas reduzam suas compras em casos de eventos fora do controle.
Mas as distribuidoras compram energia também em leilões do governo, em contratos de longo prazo, com base em projeções futuras de demanda. Caso não consigam vender toda a energia contratada e não houver demanda pelas sobras no mercado livre, arcam com o prejuízo.
Em 2014, o tombo da atividade econômica gerou esse tipo de problema. Sem receita para honrar seus compromissos, as distribuidoras foram socorridas por três empréstimos mediados pela CCEE, no valor total de R$ 21,2 bilhões.
As prestações foram repassadas à conta de luz por um prazo de cinco anos. Em setembro de 2019, após negociação entre o governo e os credores, houve o pagamento antecipado das parcelas restantes, com uma redução média de 3,62% na conta de luz.
Em reunião nesta terça (14), o diretor-geral da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), André Pepitone, disse que o órgão regulador está ciente do problema e vai discutir uma solução para o setor.
Para o advogado José Henrique Berman, sócio do BMA Advogados, o ineditismo da situação deve demandar soluções legislativas para definir como as perdas serão compartilhadas no setor, que pode passar por uma mudança estrutural no perfil de consumo.
Hollanda defende que eventuais soluções emergenciais não representem novos aumentos na conta de luz. "Ninguém quer onerar mais o consumidor. Nem as distribuidoras nem o governo."
Fonte: Folha de São Paulo