Em um cenário de possível reforma tributária, as discussões sobre o excesso da carga tributária e a complexidade da malha legislativa brasileira concorrem, invariavelmente, para debates em torno das restrições práticas impostas aos contribuintes na busca de alternativas que minimizem o ônus fiscal.
Esse é o contexto que perpassa o mérito da ADC 66, atualmente em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF). A controvérsia, levada à apreciação pela Confederação Nacional da Comunicação Social (CNCOM), pretende a declaração de constitucionalidade do artigo 129 da Lei no 11.196/2005 [1], que determina que, "para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais", entre eles os de natureza científica, artística ou cultural, "se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas".
Embora a literalidade do dispositivo legal não deixe dúvidas acerca da legitimidade da adoção de regime fiscal e previdenciário mais favorável na constituição de pessoas jurídicas prestadoras de serviços intelectuais, na prática, tanto os auditores da Receita Federal do Brasil quanto os Tribunais Regionais Federais (TRFs), o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e mesmo os órgãos que compõem a Justiça do Trabalho têm afastado a aplicação da norma.
De maneira geral, o direito dos contribuintes é afastado a priori, sob o fundamento de que a aplicação do artigo 129 da Lei no 11.196/2005, popularmente conhecida como o fenômeno da "pejotização", caracterizaria, de antemão, intuito de burlar o Fisco. Sob esse aspecto, a ausência de recolhimento das contribuições previdenciárias devidas a supostos empregados, pessoas físicas, tem ensejado uma série de autuações no âmbito administrativo, as quais se amparam, principalmente, na previsão do artigo 229, §2º do Regulamento da Previdência Social [2].
Outro argumento corriqueiro para afastar a aplicação do artigo 129 da Lei no 11.196/2005 se relaciona à interpretação de que a prestação de serviços intelectuais por profissionais autônomos não admitiria a presença dos elementos caracterizadores do vínculo empregatício na relação do prestador com o contratante dos serviços, tais como subordinação de fato e de direito, exclusividade, onerosidade, pessoalidade e habitualidade.
Embora não se menospreze, caso a caso, a necessidade de demonstração da existência dos requisitos essenciais para a caracterização da relação empregatícia, a disposição do artigo 129 da Lei no 11.196/2005 evidencia a intenção do legislador ordinário de fragmentar as esferas fiscal, previdenciária e trabalhista.
Essa acepção fica mais evidente quando examinado o veto ao parágrafo único [3] do artigo 129 da Lei no 11.196/2005, no qual o presidente da República destacou que "as legislações tributária e previdenciária, para incidirem sobre o fato gerador cominado em lei, independem da existência de relação trabalhista entre o tomador do serviço e o prestador do serviço [4](...)". Em outras palavras: mesmo a identificação de vínculo empregatício e a violação à legislação trabalhista não deveriam autorizar a modificação do regime tributário/previdenciário aplicável às pessoas jurídicas que prestam serviço intelectual.
Nesse aspecto, o afastamento do artigo 129 da Lei no 11.196/2005 deve observar os critérios atinentes à desconsideração da personalidade jurídica [5], reclamando a comprovação, no âmbito do Poder Judiciário, da utilização de meios ilícitos, como fraudes ou simulações. As autoridades administrativas, por sua vez, não podem desqualificar o regime jurídico adotado de maneira desmotivada e ilegítima, sob pena de caracterização de violação ao princípio da autonomia patrimonial das empresas, ao princípio da livre iniciativa e da autonomia empreendedora.
No mesmo sentido, tivemos importantes disposições introduzidas recentemente no ordenamento jurídico pela MP da Liberdade Econômica (convertida na Lei no 13.874/2019), "que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica".
Esses argumentos foram considerados pela ministra Cármen Lúcia, Relatora da ADC 66, que proferiu voto favorável ao contribuinte, declarando a constitucionalidade do artigo 129 da Lei no 11.196/2005, sob pena de indevida interferência econômica nas atividades empresariais e na liberdade econômica constitucionalmente garantida.
O racional utilizado pela relatora encontra amparo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, nos autos da ADPF 324, afirmou a licitude da terceirização da atividade, meio ou fim, considerando que tais hipóteses não implicariam na caracterização de relação de emprego entre contratante e o empregado contratado. Naquela ocasião (agosto de 2018), decidiu-se que a mera cisão de atividades entre pessoas jurídicas distintas, por si só, não configuraria vínculo empregatício e tampouco caracterizaria intuito fraudulento.
Essa jurisprudência favorável aos interesses dos contribuintes novamente foi confirmada pelo Plenário do STF em julho de 2020, quando o tribunal julgou constitucional a Lei da Terceirização (Lei 13.429/2017), que permitiu a terceirização de atividades-fim das empresas urbanas [6]. Nessa ocasião, importantes ponderações a respeito da flexibilização das normas trabalhistas e adequação do modelo brasileiro ao cenário internacional prevaleceram.
A discussão deve ser examinada, ainda, à luz do julgamento da ADI 2.446, no qual cinco ministros já se manifestaram no sentido da constitucionalidade da norma antielisiva inscrita no artigo 116 do CTN. Nos autos dessa ADI, a ministra Cármen Lúcia, também relatora, assinalou ser constitucional a possibilidade de, por meio de vias legítimas e idôneas, o contribuinte buscar a economia fiscal, legitimando seu propósito de realizar suas atividades empresariais "de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada" [7].
Embora o julgamento da ADC 66 tenha sido interrompido por pedido de vista do ministro Dias Toffoli, a maioria do Plenário já se manifestou no sentido da constitucionalidade do artigo 129 da Lei nº 11.196/2005. Como consequência do encerramento do julgamento, as autoridades fiscais devem se abster de desqualificar, precocemente, as relações jurídicas firmadas com base em regime fiscal/previdenciário mais benéfico às pessoas jurídicas que prestem serviços intelectuais.
Embora esse paradigma caracterize uma grande vitória, os contribuintes deverão continuar se resguardando para possíveis questionamentos judiciais, com o intuito de demonstrar a inexistência de eventuais abusos contratuais ou de contrariedade ao direito.
Fonte: Conjur