Já são dois os votos desfavoráveis aos contribuintes no julgamento virtual do Tema 1.042, iniciado no último dia 4, que devolve ao STF a discussão acerca da possibilidade de liberação das mercadorias importadas sem o pagamento imediato das diferenças de tributos apuradas no procedimento de desembaraço aduaneiro.
No debate, que retorna à apreciação do Supremo em recurso extraordinário interposto pela União, sustenta-se a constitucionalidade em vincular a conclusão do despacho aduaneiro ao pagamento das diferenças de tributos apuradas pelas autoridades fiscais. Mesmo já constituída essa diferença por meio da lavratura de auto de infração, o pagamento seria essencial para a liberação das mercadorias uma vez que, somente assim, impõe-se "limites e proteção ao mercado nacional", conforme sustentou o procurador-geral da Fazenda Nacional, Paulo Mendes.
Para a Fazenda, conforme destacado em sustentação oral, ainda que o importador figure como sujeito passivo de uma autuação fiscal que se presta para constituir essa suposta diferença de tributos, a autorização para a liberação das mercadorias sem o pagamento implicaria na anuência das autoridades para a prática de concorrência desleal, autorizando, "de forma predatória" — como sustentou a citado Procurador —, que produtos importados com preços mais baixos em razão do "não pagamento" dos tributos aduaneiros ingressassem no Brasil, prejudicando a indústria nacional.
É justamente nesse cenário de confusão de conceitos e premissas que alguns aspectos essenciais do debate precisam ser cuidadosamente ponderados.
De fato, na prática, o grande volume de interrupções dos despachos aduaneiros guarda direta relação com questionamentos formulados pelas autoridades fiscais acerca da classificação das mercadorias importadas. Ao buscar a reclassificação — via de regra para um enquadramento mais oneroso —, a Receita Federal exige o pagamento da diferença dos tributos e, na hipótese de oposição do importador, deve lavrar o auto de infração (artigo 42, §2º, da IN 680/2006). Com a lavratura do auto de infração, tem-se, então, definitivamente constituído o crédito tributário, deslocando o debate originalmente iniciado na seara do Direito Aduaneiro para o campo do Direito Tributário. Em outras palavras: exige-se no auto de infração tributos e multas alcançados pela definição do artigo 113 do Código Tributário Nacional.
Não há, nesse contexto, como se sustentar o argumento da Procuradoria, acompanhado pelos ministros Marco Aurélio, relator, e Alexandre de Moraes no sentido de que, mesmo após lavrado o auto de infração para a cobrança da suposta diferença dos tributos aduaneiros, o pagamento se impõe necessário para fins de elidir a sonegação fiscal e proteger a indústria nacional.
É inquestionável o fato de que, uma vez constituído o crédito tributário, a discussão desloca-se da competência legal do Direito Aduaneiro para normas de Direito Tributário, não havendo mais o que se falar em retenção das mercadorias até o pagamento dos tributos. Inclusive, justamente por esse motivo que a legislação aduaneira, em especial o Decreto-Lei nº 1.455/1976, trata de forma diferenciada as hipóteses de importação passíveis de pena de perdimento — estas, sim, que definitivamente se prestam para controle de fronteiras e proteção do comércio local — das demais infrações com impactos exclusivamente tributários e passíveis de cobrança via autuações fiscais.
Ademais, sustentar que um importador autuado não pagará os tributos exigidos caso estes sejam efetivamente confirmados após, por exemplo, o trâmite regular do processo administrativo fiscal, é reconhecer a incompetência arrecadatória da própria União e não poderia justificar a satisfação imediata de uma obrigação que a própria legislação autoriza a interposição de defesa e a suspensão da exigibilidade do crédito tributário debatido (artigo 151, inciso III, do Código Tributário Nacional).
Afirmar, ainda, que o imposto de importação é tributo extrafiscal e que se presta para o controle, e não para arrecadação, e, por consequência, a autorização do desembaraço de mercadorias sem pagamento poderá prejudicar a indústria nacional, perfaz um raciocínio no mínimo ingênuo, na medida em que parcela considerável das mercadorias importadas sequer possuem similares nacionais, vide a quantidade de ex-tarifários vigentes.
Outro aspecto importante a ser destacado diz respeito ao movimento global dos países no sentido de certificarem seus importadores com vistas a facilitarem as transações comerciais internacionais. O Programa Operador Econômico Autorizado (OEA), por exemplo, encabeçado pela Organização Mundial das Aduanas (OMA) e apoiado pela OCDE, é pauta da política econômica brasileira e vai de encontro com a decisão que vem se firmando no julgamento do RE 1.090.591 ora em análise.
Com efeito, um dos pilares do referido programa reside justamente na desburocratização e agilização dos despachos aduaneiros, medida que em absolutamente nada impede ou restringe que esses processos sejam revisitados, em procedimentos próprios de revisão aduaneira e no período de cinco anos após o registro das declarações de importação.
Assim, pautar o Supremo pela orientação de que o pagamento de supostas diferenças de tributos apuradas no momento do desembaraço aduaneiro é requisito essencial para a liberação das mercadorias importadas evidencia-se um retrocesso, inclusive no contexto da Súmula STF 323. Em adição, alça ao tratamento desigual os importadores que foram parametrizados em canais de conferências e tiveram de adiantar, para posteriormente discutir, as supostas diferenças de tributos para terem liberadas suas mercadorias e aqueles outros que, importando os mesmos produtos, tiveram suas mercadorias liberadas em canal verde de conferência.
A isonomia em que se pauta o voto do ministro Marco Aurélio não reside, no caso, na equiparação dos produtos nacionais com os importados mas, sim, em proporcionar a isonomia das relações entre os próprios contribuintes importadores, os quais possuem a prerrogativa constitucional de se defender administrativamente de imposições tributárias sem estarem sujeitos à sanção política de terem retidas suas mercadorias até o pagamento dos tributos supostamente devidos.
Fonte: ConJur