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Carf analisa a tributação pelo IRPF da renda em cessão gratuita de bens imóveis


Nesta semana, abordaremos os precedentes do Carf acerca da tributação pelo IRPF da cessão gratuita de imóveis. Trata-se de um dos temas mais instigantes da teoria do imposto de renda, uma vez que se configura uma tributação sobre uma renda não auferida.


Sob a ótica da renda na economia, um dos conceitos mais importantes é o de Haig-Simons, que abrangeria os valores consumidos durante o período somados aos acréscimos patrimoniais líquidos[1].


Carlos Leonetti pontua que, de acordo com o conceito de Haig-Simons, a renda deveria abranger rendimentos psíquicos ou imateriais, que se traduzem na economia que seu titular obtém ao se utilizar de bens e serviços próprios[2].


O referido autor menciona que a doutrina norte-americana costuma denominar tal renda como imputada, sendo que ela não é geralmente tributada em virtude das dificuldades operacionais de sua determinação, ainda que essa ausência de tributação possa vir a comprometer o princípio da isonomia tributária[3].


Ao se debruçar sobre o conceito de renda imputada, Miguel Delgado Gutierrez aponta que ela não possui um significado preciso, mas estaria ligada aos benefícios auferidos pelos proprietários em razão do uso de seus próprios bens ou da prestação de serviços para si mesmo[4].


Ademais, Miguel Gutierrez faz uma pesquisa sobre o assunto à luz do Direito Comparado, informando que o Tribunal Constitucional Alemão já admitiu mais de uma vez a tributação dos rendimentos imputados à casa própria. No Reino Unido, houve até 1963 tributação sobre a renda imputada relativa aos imóveis próprios. Por sua vez, a tributação sobre o valor locatícios dos bens ocupados pelo proprietário permanece existindo na Itália e na Espanha pelo montante que seria equivalente ao que o proprietário receberia caso alugasse para um terceiro[5].


No âmbito do direito brasileiro, o artigo 23, VI, da Lei n. 4.506/64 estabeleceu que o valor locativo do prédio urbano construído quando cedido seu uso gratuitamente será classificado como rendimento de aluguel[6].


Nesse sentido, tal dispositivo foi regulamentado nos artigos 49, §1º, do RIR/99[7] e 41, §1º, do RIR/18, que determinaram que, na hipótese de imóvel cedido gratuitamente, constitui rendimento tributável na declaração de ajuste anual o equivalente a 10% do seu valor venal, ou do valor constante da guia do IPTU correspondente ao ano-calendário da declaração.


Vale notar que o artigo 6º, III, da Lei n. 7.713/88 previu a isenção do valor locativo do prédio construído, quando ocupado por seu proprietário ou cedido gratuitamente para uso do cônjuge ou de parentes de primeiro grau[8], sendo que tal dispositivo foi reafirmado nos artigos 39, IX, do RIR/99[9] e 35, VII, “b”, do RIR/18[10].


Tal modalidade de tributação não passou ilesa a críticas da doutrina, dado que a tributação dessa possível “renda imputada” não seria compatível com o nosso ordenamento jurídico, sobretudo com o Código Tributário Nacional (CTN).


Nessa linha, a referida matéria já foi inclusive objeto de análise na coluna “Consultor Tributário”, em artigo de autoria de Hugo de Brito Machado Segundo[11], para o qual inexiste aquisição de disponibilidade econômica e jurídica de qualquer acréscimo patrimonial na cessão de gratuita de imóvel, não havendo que se falar em renda sobre montantes que o contribuinte “deixou de receber” em virtude de cessão gratuita de imóvel ou sobre serviços prestados sem contraprestação.


Miguel Gutierrez afirma que a referida tributação equivale a tributar a renda potencial ou a capacidade de adquirir renda, não se tratando de uma tributação de um acréscimo patrimonial efetivo, de modo que a norma brasileira parte da premissa de que toda cessão gratuita de imóvel acoberta uma locação por meio de uma presunção absoluta de ocorrência da renda[12].


Nesse sentido, Fabiana Carsoni também assinala a incompatibilidade entre a tributação pelo IRPF do valor locativo de imóvel cedido gratuitamente e o artigo 43 do CTN, visto que este dispositivo somente admite a tributação de renda realizada, isto é, de renda cuja disponibilidade esteja adquirida[13].


A referida autora destaca ainda que a determinação do valor locativo do imóvel prevista no Regulamento do Imposto de Renda (10% do valor venal ou da guia do IPTU) não possui amparo legal[14].


Feitas algumas considerações gerais sobre a ideia de renda imputada e a tributação da renda da cessão gratuita de bem imóvel no ordenamento jurídico pátrio, passaremos à análise dos precedentes do Carf sobre o assunto.


No Acórdão 2201-01.161 (de 07/06/11), a turma decidiu, de forma unânime, pela incidência do IRPF na cessão gratuita de imóvel por pessoa física para pessoa jurídica da qual ela é sócia.


A conselheira relatora expressamente mencionou que a isenção prevista no artigo 6º, III, da Lei n. 7.713/88 não alcança a cessão gratuita para pessoa jurídica, ainda que esta tenha como sócia o cedente do imóvel.


No Acórdão 2801-01.486 (de 12/04/11), também houve a manutenção da incidência do IRPF na cessão gratuita de imóvel por pessoa física.


Ainda que o contribuinte tenha alegado que não haveria como caracterizar a cessão gratuita, uma vez que havia cláusula contratual que permitia a ocupação pelo ex-proprietário até que o imóvel fosse vendido a terceiro, decidiu-se, por unanimidade, que haveria incidência do IRPF na cessão gratuita de imóvel por pessoa física para sua irmã, já que irmã não se enquadra como parente de primeiro grau.


O contribuinte alegou que outros imóveis cedidos gratuitamente por ele seriam usados por ele próprio, sua esposa e seu filho. No voto vencido, o conselheiro relator manifestou o entendimento de que houve comprovação de tal uso por pessoas que se qualificariam na isenção prevista no artigo 6º, III, da Lei n. 7.713/88.


Todavia, os demais conselheiros entenderam que a cessão gratuita dos imóveis não se deu diretamente para o próprio contribuinte, esposa ou filho, mas para pessoa jurídica, da qual eles eram sócios.


Assim, a turma decidiu por maioria de votos pela incidência de IRPF sobre a cessão gratuita de imóveis para pessoa jurídica.


No Acórdão 2801-003.684 (de 09/09/14), decidiu-se, de forma unânime, pela tributação do IRPF de pessoa física que cedeu gratuitamente imóvel de sua propriedade para empregado de pessoa jurídica, da qual é sócia.

No Acórdão 2201-003.316 (de 04/10/17), houve uma decisão unânime no que tange à tributação da pessoa física que cedeu gratuitamente imóvel por meio de contrato de comodato para pessoa jurídica que possuía atividade de posto de gasolina.


Neste caso, o contribuinte alegou que o aluguel do referido imóvel seria bem menor do que os dez por cento do valor cadastral do imóvel para fins de IPTU, o que seria comprovado por meio de recibos e contratos, no entanto, a quantificação efetuada na autuação fiscal foi mantida diante da disposição normativa do então vigente RIR/99.


No Acórdão 2401-006.143 (de 09/04/19), a turma decidiu de forma unânime pela incidência do IRPF na cessão gratuita por pessoa física de imóveis para pessoa jurídica, da qual ela é titular de 50% das quotas.


Também merece destaque uma situação distinta que foi analisada no Acórdão 2301-005.770 (de 04/12/18).


No referido caso, a pessoa física integralizou bem imóvel de sua propriedade ao capital de pessoa jurídica, no entanto, permaneceu residindo no mencionado imóvel.


A autoridade fiscal lavrou o auto de infração com fundamento no artigo 74 da Lei n. 8.383/91, pelo qual se consideraria rendimento tributável da pessoa física o valor locativo de imóvel cedido gratuitamente.


O artigo 74 da Lei n. 8.383/91 determina que integrará a remuneração dos beneficiários a contraprestação de aluguel de imóvel cedido para uso para administradores, diretores, gerentes e seus assessores ou de terceiros em relação à pessoa jurídica[15].


Destaque-se que o auto de infração também mencionou como seu fundamento o artigo 32 da Instrução Normativa SRF n. 15/01, ainda que tal dispositivo se referisse à hipótese de tributação do cedente do imóvel pelo IRPF na cessão gratuita de bem imóvel[16].


No voto vencido, a conselheira relatora manifestou o entendimento de que não houve comprovação pela autoridade fiscal se a pessoa física efetivamente residia no imóvel integralizado na pessoa jurídica ou se apenas usava o endereço daquele imóvel para sua correspondência, sendo que inclusive o contribuinte mencionava que morava junto a sua filha.


De outro lado, no voto vencedor, que foi seguido pela maioria dos conselheiros da turma, a conselheira redatora designada pontua que é rendimento tributável do beneficiário o valor locativo de imóvel cedido gratuitamente por pessoa jurídica nos termos do artigo 74 da Lei n. 8.383/91, sendo que a legislação tributária não impõe a condição de que o beneficiário seja empregado da pessoa jurídica. Por fim, consta que o contribuinte foi intimado a apresentar contrato de locação ou documento equivalente, o que não foi feito e confirmaria a cessão não onerosa do imóvel.


Nesse caso, nota-se que diferentemente dos demais casos em que houve tributação pelo IRPF da renda imputada decorrente da cessão gratuita de bem imóvel no cedente, houve tributação da renda imputada na figura do cessionário.


Diante de todo o exposto, verifica-se que os precedentes do Carf têm considerado como legítima a tributação pelo IRPF na cessão gratuita de bem imóvel pelo valor locativo do prédio construído nas hipóteses em que tal cessão se dá para uso de pessoa jurídica ou de terceiros que não se enquadrem como parentes de primeiro grau.


Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] SIMONS, Henry C. Personal Income Taxation: The Definition of Income as a Problem of Fiscal Policy. Chicago: University of Chicago Press, 1938, p. 49-51.

[2] LEONETTI, Carlos Araújo. O Imposto sobre a Renda como Instrumento de Justiça Social no Brasil. Barueri: Manole, 2003. p. 22-23.

[3] LEONETTI, Carlos Araújo. O Imposto sobre a Renda como Instrumento de Justiça Social no Brasil. Barueri: Manole, 2003. p. 22-23.

[4] GUTIERREZ, Miguel Delgado. Da Renda Imputada. Revista Direito Tributário Atual n. 23. São Paulo: IBDT/Dialética, 2009. p. 357-358.

[5] GUTIERREZ, Miguel Delgado. Da Renda Imputada. Revista Direito Tributário Atual n. 23. São Paulo: IBDT/Dialética, 2009. p. 359-361.

[6] Lei n. 4.506/64: “Art. 23. Serão classificados como aluguéis ou "royalties" tôdas as espécies de rendimentos percebidos pela ocupação, uso, fruição ou exploração dos bens e direitos referidos nos artigos 21 e 22, tais como: (...) VI - o valor locativo do prédio urbano construído, quando cedido seu uso gratuitamente”.

[7] RIR/99: “Art. 49. São tributáveis os rendimentos decorrentes da ocupação, uso ou exploração de bens corpóreos, tais como: (...)

§ 1º Constitui rendimento tributável, na declaração de rendimentos, o equivalente a dez por cento do valor venal de imóvel cedido gratuitamente, ou do valor constante da guia do Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU correspondente ao ano-calendário da declaração, ressalvado o disposto no inciso IX do art. 39”.

[8] Lei n. 7.713/88: “Art. 6º Ficam isentos do imposto de renda os seguintes rendimentos percebidos por pessoas físicas: (...)

III - o valor locativo do prédio construído, quando ocupado por seu proprietário ou cedido gratuitamente para uso do cônjuge ou de parentes de primeiro grau;”.

[9] RIR/99: “Art. 39. Não entrarão no cômputo do rendimento bruto: (...)

IX - o valor locativo do prédio construído, quando ocupado por seu proprietário ou cedido gratuitamente para uso do cônjuge ou de parentes de primeiro grau;”.

[10] RIR/18: “Art. 35. São isentos ou não tributáveis: (...)

VII - os seguintes rendimentos diversos: (...)

b) o valor locativo do prédio construído, quando ocupado por seu proprietário ou cedido gratuitamente para uso do cônjuge ou de parentes de primeiro grau;”.

[11] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Uma estranha tributação de rendimentos inexistentes. Conjur. 13 de março de 2019, 13h52. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mar-13/consultor-tributario-estranha-tributacao-rendimentos-inexistentes

[12] GUTIERREZ, Miguel Delgado. Da Renda Imputada. Revista Direito Tributário Atual n. 23. São Paulo: IBDT/Dialética, 2009. p. 364-365.

[13] SILVA, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da. A Tributação da Renda na Cessão Gratuita de Uso de Imóveis, prevista no art. 24, inciso VI, da Lei n. 4.506/1964: Renda Imputada ou Cláusula Especial Antiabuso. Revista Direito Tributário Atual n. 39. São Paulo: IBDT, 2018. p. 150-153.

[14] SILVA, Fabiana Carsoni Alves Fernandes da. A Tributação da Renda na Cessão Gratuita de Uso de Imóveis, prevista no art. 24, inciso VI, da Lei n. 4.506/1964: Renda Imputada ou Cláusula Especial Antiabuso. Revista Direito Tributário Atual n. 39. São Paulo: IBDT, 2018. p. 150-153.

[15] Lei 8.383/91: “Art. 74. Integrarão a remuneração dos beneficiários:

I - a contraprestação de arrendamento mercantil ou o aluguel ou, quando for o caso, os respectivos encargos de depreciação, atualizados monetariamente até a data do balanço:

a) de veículo utilizado no transporte de administradores, diretores, gerentes e seus assessores ou de terceiros em relação à pessoa jurídica;

b) de imóvel cedido para uso de qualquer pessoa dentre as referidas na alínea precedente;”.

[16] Instrução Normativa SRF n. 15/01: “Art. 32. Considera-se rendimento tributável, na Declaração de Ajuste Anual, o valor locativo de imóvel cedido gratuitamente.

Parágrafo único. O rendimento tributável é equivalente a dez por cento do valor venal do imóvel cedido, podendo ser adotado o constante na guia do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) correspondente ao ano-calendário da Declaração de Ajuste Anual”.


Fonte: ConJur

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