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Contribuição previdenciária sobre a folha: o debate sobre horas extras


O ano de 2020 vem sendo intenso quanto a manifestações judiciais relativas à tributação incidente sobre a folha, vez que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça produziram considerável número de decisões sobre essa matéria.


Entre elas se destaca a alteração de entendimento consolidado no STJ e a definição pelo STF quanto à constitucionalidade da incidência da contribuição previdenciária da empresa sobre o adicional de um terço de férias (RE 1072485) [1].


À vista dos julgamentos, houve sensível redução dos debates voltados para a tributação da folha, base de cálculo a qual permanece em evidência pelo encargo representado para as empresas.


Não obstante, e a despeito de anterior manifestação por parte do Superior Tribunal de Justiça no sentido da incidência de contribuição previdenciária sobre horas extras e seu adicional, em virtude de fato legislativo novo, torna-se possível a alegação da presença de argumentos para a revisão, ou ao menos reanálise, do posicionamento.


Isso porque em 28 de novembro de 2017 foi publicada a Lei nº 13.485/2017, cujo objeto principal é a regulamentação do parcelamento de débitos com a Fazenda Nacional relativos às contribuições previdenciárias de responsabilidade de Estados, Distrito Federal e municípios, enquanto empregadores do regime previsto na CLT [2].


Seu artigo 1º é expresso ao firmar que os débitos oriundos das contribuições previstas no artigo 11, parágrafo único, alíneas "a" e "c", da Lei nº 8.212/91 poderão ser pagas em até 200 parcelas.


Estas são as contribuições sociais das empresas, incidentes sobre a remuneração paga ou creditada aos segurados a seu serviço e dos trabalhadores, incidentes sobre o seu salário de contribuição.


Para além da regulamentação do parcelamento de débitos mencionados, o artigo 11, inciso III, alíneas "a" e "b", da Lei nº 13.485/2017 traz previsão importante no sentido de que também deverá ocorrer a revisão da dívida previdenciária dos entes públicos relacionados, além de prescrever eventual encontro de contas entre estes e a Previdência Social.


E, ao especificar os componentes da dívida com o regime geral de previdência que passarão por revisão, indica que os valores de verbas cuja natureza seja indenizatória, indevidamente incluídas na base de cálculo das contribuições, devem ser retirados.


"Artigo 11 — O Poder Executivo federal fará a revisão da dívida previdenciária dos municípios, com a implementação do efetivo encontro de contas entre débitos e créditos previdenciários dos ,municípios e do regime geral de previdência social decorrentes, entre outros, de:

I - valores referentes à compensação financeira entre regimes de previdência de que trata a Lei nº 9.796, de 5 de maio de 1999;

II - valores pagos indevidamente a título de contribuição previdenciária dos agentes eletivos federais, estaduais ou municipais prevista na alínea 'h' do inciso I do artigo 12 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal;

III - valores prescritos, assim considerados em razão da Súmula Vinculante nº 8 do Supremo Tribunal Federal, que declara inconstitucionais os artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991;

IV - valores referentes às verbas de natureza indenizatória, indevidamente incluídas na base de cálculo para incidência das contribuições previdenciárias, tais como:

a) terço constitucional de férias; b) horário extraordinário; c) horário extraordinário incorporado; d) primeiros 15 dias do auxílio-doença; e) auxílio-acidente e aviso prévio indenizado".


Diante da previsão legal, algumas considerações tornam-se necessárias, sendo a primeira a determinação da natureza da norma.


A análise da legislação permite a conclusão de que as previsões do artigo 11 claramente representam diretrizes para a revisão do débito previdenciário dos entes políticos, guardando ainda evidente caráter interpretativo.


A norma possui claro escopo de orientação, levando a seus destinatários qual a interpretação necessária para a regular aplicação de seu conteúdo.


E sob esse olhar (de ser o artigo 11 uma norma de interpretação), seria cabível, por meio de aplicação sistêmica, as disposições do artigo 106, I, do Código Tributário Nacional, admitindo sua aplicação pretérita [3].

Com efeito, a própria interpretação literal da Lei nº 13.485/2017 leva à conclusão de sua aplicação retroativa na medida em que determina que as rubricas que especifica sejam excluídas da base de cálculo de débitos vencidos.


Caso não se leve a efeito essa posição e se entenda pelos efeitos modificativos de relação jurídica pela lei em questão, ao menos a partir de sua edição passa a constar do ordenamento jurídico norma que define em caráter geral e obrigatório a natureza de diversas verbas, entre estas as horas extras.


Em segundo momento há de se analisar a possibilidade de extensão de seu conteúdo à relação tributária dos empregadores privados, igualmente sujeitos passivos da contribuição sobre a folha de pagamentos.


Estados e municípios possuem servidores inseridos em regimes próprios de previdências, porém ainda possuem grande números de funcionários públicos contratados sob o regime da CLT, cujo regime previdenciário é o geral, trazido nos artigos 201 e seguintes da Constituição Federal, havendo ainda o dever de recolhimento das contribuições previstas no artigo 195, I, "a" a "c", da Constituição Federal e materializadas na Lei nº 8.212/91.


Nesse cenário, os municípios e Estados figuram como empregadores comuns, cumprindo de modo igualitário aos empregadores privados as obrigações trabalhistas e previdenciárias.


Hely Lopes Meirelles preleciona que "a Administração Pública pode praticar atos ou celebrar contratos em regime de Direito privado (civil, comercial), no desempenho normal de suas atividades. Em tais casos ela se nivela ao particular, abrindo mão de sua supremacia de poder desnecessária para aquele negócio jurídico" [4].

A doutrina acima é muito apropriada, pois afirma que o poder público abre mão da supremacia de poder desnecessária e esclarece que o município, ao contratar sob o regime CLT, não afasta por completo do regime jurídico que lhe é próprio, mas que é colocado no mesmo patamar do particular com relação às características centrais do ato privado praticado.


É justamente nessa perspectiva que se mostra pertinente a afirmação da obrigatória imposição de tratamento isonômico entre os empregadores do regime geral de Previdência Social e os municípios/Estados, na medida em que os segurados vinculados a um ou outro fruirão em regime de igualdade dos benefícios previdenciários disponibilizados e custeados por essa sistemática.


Consequência primeira do tratamento isonômico entre o empregador celetista privado e o município que contrata nos moldes da CLT é a extensão das definições contidas no artigo 11 da Lei nº 13.485/2017 a todos empregadores.


Ou seja, para todos os empregadores celetistas devem ser retirados da base de cálculo das contribuições previdenciárias os valores das verbas cuja natureza seja indenizatória, a exemplo das horas extras, horas extras incorporadas, adicional de férias etc.


O tratamento igualitário na formação da base de cálculo representa medida para manutenção do equilíbrio do sistema tributário nacional. Vale lembrar que o artigo 195, I, "a" da Constituição Federal institui tributo homogêneo, aplicando-se a todos empregadores de modo idêntico [5].


Por qualquer viés que se interprete a disposição constitucional não se identifica margem para construção de base de cálculo diferenciada conforme o tipo do empregador. A mesma alegação firma-se para as disposições da Lei nº 8.212/91.


Outrossim, o tratamento igualitário para todos os vinculados ao regime geral de Previdência Social (empregadores e todas as categorias de segurados) decorre do princípio de solidariedade, matriz do sistema previdenciário, bem como da necessidade de manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial.


Isso porque a permissão, dentro do regime geral de Previdência Social, que um empregador contribuísse de forma minorada [6], porém mantendo todas as possibilidades de percepção de benefícios aos segurados a este vinculados, implicaria em violação inadmissível da isonomia entre segurados na mesma situação jurídica.

Todo esse cenário jurídico, ou ao menos o fato legislativo novo, foi apresentado ao Poder Judiciário, especificamente ao Tribunal Regional da 3ª Região, o qual. pautado em regra contida no artigo 493 do Código de Processo Civil [7], admitiu recurso especial originado em apelação cível.


Esse recurso especial foi autuado no STJ — REsp nº 1.801.020/SP (2019/0054604-5), sob relatoria do ministro Benedito Gonçalves.


O recurso teve decisão monocrática publicada no último dia 22 de setembro e infelizmente a redação do artigo 11 da Lei nº 13.485/2017 foi absolutamente ignorada, apenas constando da decisão que nos termos de precedentes as horas extras e seus adicionais guardam natureza remuneratória, compondo, portanto, a base de cálculo das contribuições previdenciárias incidentes sobre a folha.


Em desfavor dos contribuintes, a ausência de análise por parte do Poder Judiciário do cenário novo e específico tem sido uma constante. Dos processos nos quais a alegação é feita o que se percebe, quase que em unanimidade, é a repetição de que a matéria já foi objeto de análise e decidiu-se pela manutenção da incidência da contribuição previdenciária a cargo da empresa e incidente sobre a folha sobre horas extras e seus adicionais.


Em raros processos, quase sempre pela oposição de embargos de declaração, o Poder Judiciário apresentou manifestações superficiais no sentido de que a Lei nº 13.485/2017 trataria de renegociação de dívidas e não de tributação.


A despeito do REsp nº 1.801.020 ter tido primeira decisão negativa, nos autos já constam embargos de declaração e é provável que os patronos ainda adotem as vias recursais adequadas para que haja análise pelo colegiado.


Certamente o conteúdo da Lei nº 13.485/2017 é fato relevante merecedor de análise aprofundada por parte do Poder Judiciário, o que somente ocorrerá por meio de ações judiciais e o questionamento detalhado das razões de sua aplicação a todos os empregadores e sujeitos passivos da contribuição previdenciária patronal.


A depender do aprofundamento do debate e de seu direcionamento, essa mesma legislação pode servir de base de questionamento para as outras verbas expressamente listadas; tudo a depender, preliminarmente, do real enfrentamento dos argumentos pelo Poder Judiciário.

[1] Também foi decidida a inconstitucionalidade da contribuição previdenciária sobre salário-maternidade, não incidência das contribuições previdenciárias da empresa sobre os 15 dias, manutenção da incidência destes tributos sobre adicionais.

[2] Ementa da Lei nº 13485/2017 — dispõe sobre o parcelamento de débitos com a Fazenda Nacional relativos às contribuições previdenciárias de responsabilidade dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, e sobre a revisão da dívida previdenciária dos municípios pelo Poder Executivo federal; altera a Lei nº 9.796, de 5 de maio de 1999; e dá outras providências.

[3] "Artigo 106 — A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

I. em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados".

[4] Hely Lopes Meirelles, ,"Direito Administrativo Brasileiro", Pág. 139, 22.ª ed., 1990, Malheiros, SP;

[5] "Artigo 195 — A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, e das seguintes contribuições sociais (vide Emenda Constitucional nº 20, de 1998):

I. do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre (redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998):

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício (incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)".

[6] "Artigo 150 — Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios:

(...) II. instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos".

[7] "Artigo 493 — Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão. Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir".


Fonte: ConJur

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