O conceito de insumos previsto no art. 3º, II das leis 10.637/02 e 10.833/03 e a possibilidade de apropriação de créditos de PIS e COFINS sobre licenciamento de marca.
Mesmo após o STJ delimitar o conceito de insumos para fins de creditamento de PIS e COFINS1, o alcance semântico da redação do inciso II do art. 3º das leis 10.637/2002 e 10.833/2003 permanece controvertido no plano pragmático, a exemplo do posicionamento adotado pela Receita Federal na solução de consulta COSIT 117, de 28 de setembro de 2020, cuja ementa é a seguinte:
CRÉDITOS DA NÃO CUMULATIVIDADE. ROYALTIES. DIREITOS AUTORAIS. INSUMOS. IMPOSSIBILIDADE. O pagamento de despesas de royalties a pessoa jurídica domiciliada no país, em decorrência de contrato de licença de uso de marca e imagem, inclusive a chamada remuneração mínima, não permite a apuração de créditos da Cofins na modalidade aquisição de insumos, conquanto não se trata de aquisição de serviços.
Tal resposta parte de questionamento de contribuinte do segmento de indústria e comércio de brinquedos licenciados, que remunera a autorização para uso dos respectivos direitos autorais por meio do pagamento de royalties.
Em linhas gerais, a dúvida consistiu em saber se os valores incorridos para o licenciamento e uso das marcas que estampam seus produtos se enquadrariam no conceito de insumo previsto no inciso II da referida norma.
Para fundamentar o entendimento contrário ao creditamento, o fisco se pautou na redação do próprio dispositivo, que possibilita o desconto de valores relativos a "bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda":
15. Como consta dos dispositivos transcritos, a modalidade de creditamento em voga beneficia a aquisição de "bens e serviços". Assim, como evidentemente não se trata de aquisição de bens, cumpre verificar se os royalties concernentes à obtenção de licenciamento de direitos autorais poderiam ser enquadrados como aquisição de serviços para fins dos referidos dispositivos.
[...]
16. Da leitura dos dispositivos supramencionados, em especial do art. 23, depreende-se que, para fins da legislação do Imposto sobre a Renda, os royalties assemelham-se ao aluguel, de forma a estabelecer a esses rendimentos classificação diversa das demais receitas, inclusive das receitas de prestação de serviços.
17. Tal entendimento está embasado no fato de que a locação de bens móveis, à qual se assemelham os royalties, constitui típica obrigação de dar, diferentemente dos serviços, que possuem característica de obrigação de fazer.
A resposta menciona ainda o acórdão proferido no RE 925.038/PE, em que o STF decidiu que "o objeto dos contratos que implicam pagamento de royalties é a cessão de uso de capital tecnológico, sendo o seu respectivo pagamento caracterizado como renda, com natureza jurídica de aluguel, razão pela qual não se configura uma prestação de serviços".
Como se nota, a questão não foi analisada sob o enfoque da essencialidade ou relevância do licenciamento na operação da empresa, tal como definido pelo STJ no REsp 1221.170-PR do STJ, mas à luz da natureza jurídica do licenciamento.
De plano, a Receita Federal afasta a possibilidade de a licença ser classificada como aquisição de bens, concentrando esforços principalmente na demonstração de que os royalties pagos não se enquadram como remuneração pela contratação de serviços.
Tecnicamente o entendimento está correto, pois, de fato, não ocorre a aquisição da marca e, ademais, a jurisprudência do STF já se manifestou no sentido de que não há relação de prestação de serviços no negócio jurídico firmado entre licenciante e licenciado.
Todavia, talvez no afã de justificar a impossibilidade de apropriação do crédito, o fisco realiza uma leitura equivocada do texto legal, que novamente destacamos:
Art. 3º Do valor apurado na forma do art. 2o a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação
a:
[...]
II - Bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, [...];
Ao afirmar que o royalty pago pelo contribuinte "evidentemente não se trata de aquisição de bens", a autoridade fiscal ignorou a amplitude semântica do enunciado, que emprega o termo "utilizados", a rigor, mais abrangente do que "adquiridos".
Tanto é assim que a norma, quando desejou limitar o aproveitamento do crédito à tal fim, foi literal nesse sentido:
Art. 3º Do valor apurado na forma do art. 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação
a:
I - bens adquiridos para revenda, exceto em relação às mercadorias e aos produtos referidos:
a) no inciso III do § 3o do art. 1o desta Lei;
b) nos §§ 1o e 1o-A do art. 2o desta Lei;
[...]
VI - máquinas, equipamentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado, adquiridos ou fabricados para locação a terceiros, ou para utilização na produção de bens destinados à venda ou na prestação de serviços;
[...]
XI - bens incorporados ao ativo intangível, adquiridos para utilização na produção de bens destinados a venda ou na prestação de serviços2.
Diante disso, para fazer jus ao crédito, basta ao contribuinte empregar os respectivos bens e serviços em seu processo de industrialização ou prestação de serviços, ainda que não ocorra a aquisição propriamente dita.
No caso em análise, a Receita Federal, com razão, equiparou o licenciamento a um contrato de locação, contudo, não levou em conta que os direitos sobre a "marca" são considerados bens móveis, conforme determina a lei 9.279/1996, que regula a propriedade industrial:
Art. 2º A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua-se mediante:
I - concessão de patentes de invenção e de modelo de utilidade;
II - concessão de registro de desenho industrial;
III - concessão de registro de marca;
IV - repressão às falsas indicações geográficas; e
V - repressão à concorrência desleal.
Art. 5º Consideram-se bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de propriedade industrial.3
Deve-se atentar, nesse ponto, ao comando previsto no art. 110 do CTN, que dispõe que "a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado [...], para definir ou limitar competências tributárias".
Ora, se a lei conceitua o direito à "marca" como bem, a interpretação da norma tributária contida no inciso II do art. 3º das leis 10.637/2002 e 10.833/2003 deve ser abrangente o suficiente para abarcá-lo como tal, não possuindo a Receita Federal legitimidade para impor aplicação diversa.
Até aqui, portanto, pode-se concluir que a interpretação realizada pelo fisco para negar a possibilidade de creditamento sobre os royalties de licenciamento foi inadequada, já que, conforme demonstrado, o contribuinte utiliza - ainda que não adquira - o bem na fabricação de seus produtos.
Resta verificar se, no caso específico da consulta, o direito de uso da marca pode ser considerado insumo sob as premissas definidas pelo STJ no já mencionado REsp 1221.170-PR, julgado sob a sistemática de recurso repetitivo:
O conceito de insumo deve ser aferido à luz dos critérios da essencialidade ou relevância, vale dizer, considerando-se a imprescindibilidade ou a importância de determinado item - bem ou serviço - para o desenvolvimento da atividade econômica desempenhada pelo contribuinte.
Nesse sentido, cabem as seguintes ponderações da Ministra Regina Helena Costa no voto condutor do resultado do julgamento:
Demarcadas tais premissas, tem-se que o critério da essencialidade diz com o item do qual dependa, intrínseca e fundamentalmente, o produto ou o serviço, constituindo elemento estrutural e inseparável do processo produtivo ou da execução do serviço, ou, quando menos, a sua falta lhes prive de qualidade, quantidade e/ou suficiência. Por sua vez, a relevância, considerada como critério definidor de insumo, é identificável no item cuja finalidade, embora não indispensável à elaboração do próprio produto ou à prestação do serviço, integre o processo de produção, seja pelas singularidades de cada cadeia produtiva seja pelas singularidades de cada cadeia produtiva [...], seja por imposição legal [...].
[...]
Como visto, consoante os critérios da essencialidade e relevância, acolhidos pela jurisprudência desta Corte e adotados pelo CARF, há que se analisar, casuisticamente, se o que se pretende seja considerado insumo é essencial ou de relevância para o processo produtivo ou à atividade desenvolvida pela empresa.
Ao se analisar o contexto fático da solução de consulta, verifica-se que a Consulente é fabricante de um tipo específico de brinquedo, que apenas pode ser fabricado e lançado no mercado se contar com a autorização dos detentores dos direitos autorais da marca utilizada no produto.
Para fins de ilustração, se o fabricante optar por produzir bonecos do Spiderman, tal intento somente será possível com a autorização da Marvel Studios, sob o risco de responsabilização na esfera civil e, eventualmente, até na criminal.
Os royalties pagos pelo uso de tais direitos, portanto, possuem importante papel na atividade que a empresa se propõe a realizar, estando a marca licenciada intrínseca e fundamentalmente vinculada ao produto.
Tal gasto, portanto, é elemento estrutural do processo produtivo, sem o qual a empresa sequer pode desempenhar sua atividade (essencial) ou, quando menos, imposição legal prevista na legislação que regula a propriedade intelectual (relevante).
Diante do exposto, é de se concluir que os royalties pagos pelo uso de direitos autorais para fabricação de produtos licenciados geram direito ao crédito de PIS e COFINS sob o regime não cumulativo.
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1 STJ, Acórdão 1221.170-PR - Rel. Napoleão Nunes Maia Filho - 24/04/2018 - Recurso Repetitivo.
2 Ao prever o creditamento sobre a aquisição de bens incorporados ao ativo intangível, a legislação permite o crédito sobre os valores incorridos para aquisição de uma marca, por exemplo, mas, em nosso entendimento, isso não afasta a maior amplitude de significação prevista no inciso II, que trata dos insumos.
3 A natureza de bem dos direitos de propriedade industrial fica ainda mais evidenciado ao se considerar que se trata de um direito real, vinculado à propriedade da coisa conforme ensina Pontes de Miranda: "O direito de propriedade preexiste ao registro se tal propriedade é a intelectual, ou se em sentido lato se fala de propriedade (= direito patrimonial). No plano do direito industrial, há o direito (patrimonial) formativo gerador, que é o direito ao registro, é o direito real que resulta do registro". (MIRANDA, Pontes de, Tratado de direito privado - Parte Especial, t. XVII, 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p.100)
Fonte: Migalhas
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